Memória das Pedras

Estátua de Borba Gato, do escultor Júlio Guerra

Memória das pedras

Fernando Balduino

                   Deu-se que pelas tantas tendências de espírito e de nações, meter à bulha casos notavelmente antipáticos de figuras históricas voltou à ribalta das recomendações públicas, tanto vivas as memórias e os afetos insabidos de grandes homens sobre pedestais ou bojudos equinos. Menos por uma poética de libertação, ou genuínas preocupações prosopopeicas; mas com grave e monótona voz, seguem os grupos novíssimo alvitre do Rei Hamlet, sem blasfêmia ou indecoros: “Vai à luta, oh, glória”, com seus feitios inorgânicos. Nesse insistiram os romanos contra o Colosso de Nero; e em igual empenho ingleses, alemães, e franceses remodelaram arquiteturas, paisagens urbanas, e tudo muito bem. A marca sobre a marca, porquanto parte, assiste o resto pelo todo; e assim segue a lógica, que, como se pode superar pensando, aplica-se sem discernimento de epigrama à materialidade em que se apresenta aquilo que não é ser humano, mas ainda assim, é humano.

                   Supondo-se, assim, não serem os exemplos pulgas de vandalismo inovador e engenhoso, está que o vendaval de aclamações tenta pintar, a posteriori, uma espécie de psicostasia sobre os rochedos inertes que, diz-se, ferem as cores do tempo. Ainda sob a imagem egípcia, vale cobrir que é tentativa legítima, como toda ideia; apesar, parecem não perceber a diferença exacerbada ao pressuporem absolutos onde não há. Com efeito, os aclamos ou agravos são dessa mesquinhez de representação que não se revelam de todo quando se abre o seio de Abraão. Referir-se a um símbolo é, senão, arbitrário; em especial quando se elegem rivalidades sem consciência, ou individualidade. Eleger a paisagem e muito contentar-se com ela é, senão, fazer-se própria escória sem fundição, de predileções rijas e imutáveis segundo o tempo (e o espaço?); tudo isso sem distinguir que a alquimia gananciosa é alucinação, e a honra ao mérito, um exercício de humildade. Xerxes mesmo foi desses adeptos; ao que mandou, no fracasso dessa distinção, chicotearem trezentas vezes o mar.

                   Pois, justamente pelas ambiguidades (como se a Confeitaria fosse Do Império ou Da República), deve-se desconfiar antes do espaço; depois da memória. Ora, se adotado o pedestal, segundo o intento e o empenho, nada de reconfigurações torna a matéria, de algum modo, vencível ou de todo maligna; ao contrário – quem o faz é o ambiente, e não o tempo. De fato, é o disfarce daquele sobre esse. Toma-se, por exemplo, um bocado de mármore. Não contendo a matéria, mas a forma, algum critério de representação, qualquer orgulho imposto sobre a imagem fica contido dentro do artista, conquanto belo; sendo que disto vem que o monumento anula o herói, se este for uma pessoa, apesar de não anular a ideia. Se, pois, exposto, é claro que muitos compreendem mal, trocando a ideia pelo herói. O espaço, então, transfigura-se em tempo e faz crer na cousa da ameaça ou pilhéria; ao que isto alguma variação moral da proposição cinemática de Galileo explica muito bem: gera ação, movimento. O museu, a praça pública, e o fundo dum lago, finalmente, não são o mesmo espaço – cada qual guarda a mesma ideia, mas a disfarça do olhar de maneira diferente. É assim mesmo que se deve, portanto, aliviar-se da impressão das memórias das pedras. Só exceção o caso em que O Comendador vier convocar ao fatídico jantar – pois pode ser que não haja na recepção demônios, nem poços de enxofre; mas, por bem, uma modesta e curiosa aula prática de História.

7260cookie-checkMemória das Pedras

3 comentários sobre “Memória das Pedras

  1. Fico me perguntando qual será o próximo passo: talhar aqueles que discordarem? Quando chegam ao poder, os ditadores mudam a história, destroem estátuas, etc. A diferença deles para um ditador é que aquele faz o que faz em nome de si mesmo, enquanto que eles fazem por nome do “bem”.

    • Antes alguém esclarecesse o que é o bem, hein Victor? Suponho que não seja o platônico, tampouco o cristão (variação moral daquele); mas parece que não há neles clareza nas ações que permita apreensão das ideias. Tudo muito obscuro, apesar do Sol.

Deixe um comentário para VICTOR FERNANDO BARROS VIANA Cancelar resposta

Seu endereço de e-mail não será publicado. Os campos necessários são marcados com *.